Texto: Bruno Vaiano | Ilustração: Ina Gouveia
Design: Juliana Krauss | Edição: Alexandre Versignassi
Ernst Haeckel era estudante de medicina, filho de um conselheiro da corte prussiana, e “provavelmente o homem mais bonito que eu já havia visto”, escreveu um de seus alunos. Ele e sua prima de primeiro grau, Anna, eram apaixonados desde a adolescência – o que, longe de ser um problema, era o sonho de todo clã aristocrático da Europa no século 19: Darwin, por exemplo, se casou com sua prima, e o irmão dela, com a irmã de Darwin. A ideia era manter a herança na família e preservar o poder dos sobrenomes.
Haeckel era o partidão perfeito, não fosse um problema: sua semelhança com Darwin não parava no casamento endogâmico. Ele também queria ser naturalista. O que, no século 19, equivalia a contar para seu tio-do-pavê-e-futuro-sogro que você largaria Medicina da USP para ser músico. Para convencer a família de que conseguiria sustentar sua prima-noiva, ele saiu em turnê pelo sul da Europa, estudando animais marinhos nas praias e desenhando-os em minúcias.
Deu certo. Haeckel escreveu best sellers, virou professor universitário e suas ilustrações foram uma sensação. Com a grana no bolso, casou-se com Anna. Um ano e meio depois, aos 29 anos, ela morreu (talvez de febre tifoide, mas não houve diagnóstico). Deprê e niilista, ele abandonou a fé religiosa e abraçou de vez a evolução por seleção natural. Viciou-se em trabalho, dormia quatro horas por noite, e começou a traçar imensas árvores da vida na Terra, que indicavam o grau de parentesco entre as espécies.
Nem todos os insights de Haeckel estavam certos. Mas, dentre suas hipóteses de arrepiar os cabelos da Igreja, uma, em particular, sobrevive na biologia: nós (e todos os animais da Terra) somos netos do Bob Esponja.
Questões porosas
As esponjas são tubos de células que se apoiam em rochas, no fundo do mar. A água entra pelas paredes desses cilindros, que filtram os nutrientes e deixam o resto sair pela abertura no topo. Elas não têm tecidos ou órgãos especializados, como acontece com nosso sangue, rins ou pulmões. Todo o corpo se dedica à tarefa de caçar petiscos microscópicos, passivamente. São os animais mais simples que existem.
Em 1874, Haeckel percebeu que as células filtradoras de comida das esponjas, os coanócitos, têm exatamente a mesma arquitetura de micróbios aquáticos chamados coanoflagelados. Eles são criaturinhas microscópicas inofensivas e onipresentes nas águas da Terra, com um quinto da largura de um fio de cabelo, formadas por uma célula só.
Pertencem ao reino Protista, aquele em que os biólogos põem as coisas que eles não sabem direito o que são (rs). Um saco de gatos taxonômico. Protistas não são fungos, animais nem plantas. Mas suas células têm estruturas complexas que esses seres vivos grandões também apresentam – como um núcleo para guardar o DNA, e usinas de geração de energia chamadas mitocôndrias. Por isso, animais, plantas, fungos e protistas formam, juntos, o grupo dos eucariontes, em oposição aos procariontes, que são as bactérias e outros seres mais despojados, sem núcleo nem mitocôndria.
Existem protistas multicelulares, visíveis a olho nu, como as algas (pois é, elas não são plantas). Mas muitos, como as amebas e protozoários, são feitos de uma célula só. É o caso dos coanoflagelados. Vistos no microscópio, eles têm a forma de uma bola em cima de um cone. Como a silhueta de um buraco de fechadura, ou de um peão de xadrez. A bola é a célula em si, onde fica o DNA e o resto do maquinário biológico. Já o cone é formado por 30 ou 40 microvilosidades, filamentos que parecem tentáculos de uma água–viva. Do centro desse cone, emerge um filamento maior, chamado flagelo, parecido com o que equipa os espermatozoides – e com a mesma função: nadar. O conjunto da obra fica assim: ~>O
É de se imaginar que esse rabinho ficasse atrás, empurrando a célula, como ocorre com o espermatozoide. Mas a verdade é que ele nada ao contrário, com o cone e o rabinho para frente. Como um avião com hélice no nariz: O<~
O coanoflagelado se move assim porque as microvilosidades atuam como “boca”: vão captando bactérias e pequenas partículas de material orgânico que pairam na água. (Embora tenha um centésimo de milímetro, esse serzinho ainda é dez vezes maior que uma bactéria comum – a mesma diferença entre você e uma coxa de frango.)
A sacada de Haeckel foi que uma esponja do mar funciona como uma colônia de coanoflagelados, que se uniram em uma muralha para aumentar a área de captação de comida. A diferença é que eles abanam coletivamente seus flagelos – lembre-se, os “rabinhos” – para sugar a água para dentro da esponja, e não para se mover. Um é Maomé indo à montanha, o outro atrai a montanha para Maomé. Os coanócitos das esponjas atuais seriam herdeiros de coanoflagelados. Protistas em carreira solo que se juntaram para formar o primeiro animal, o ancestral comum de toda a fauna da Terra.
Vale esclarecer algo: isso não quer dizer que nossos ancestrais sejam os mesmos coanoflagelados que hoje nadam pelados em Santos. Eles eram, isso sim, um protista pré-histórico, que existiu há uns 700 milhões de anos, muito parecido tanto com os coanoflagelados quanto com as células das esponjas – e cuja linhagem se bifurcou para dar origem a ambos. Do mesmo jeito que nós não descendemos de chimpanzés, e sim de um primata que não era nem humano, nem chimpanzé. É assim que as árvores darwinianas funcionam, com ramificações, e não como uma fila do ponto A ao ponto B.
Mais de um século depois, a semelhança anatômica percebida por Haeckel se revelou uma semelhança genética. Descobrimos que, de fato, os coanoflagelados são os protistas que têm DNA mais parecido com o dos animais. Nossos parentes de uma célula só já têm genes que, em nós, foram reaproveitados para produzir proteínas adesivas (que servem para construir corpos “colando” células umas nas outras) e moléculas de sinalização, que permitem comunicação entre células. Eles já são, em suma, equipados para trabalhar em grupo.
Hoje, as 37,2 trilhões de células do corpo humano se distribuem em mais de 200 tipos, altamente especializados: neurônios, óvulos, os cones e bastonetes da retina… Sozinhas, cada uma delas é tão complexa quanto – ou até mais complexa que – qualquer coanoflagelado. E todas contêm um núcleo com uma cópia completa do material genético. Mas todas topam ser funcionárias da empresa Corpo. Isso significa ceder os direitos reprodutivos aos gametas e se relegar à posição de célula somática, que não faz bebês.
Considerando que toda a vida na Terra evoluiu movida pelo instinto de produzir crianças, esse é um passo organizacional e tanto: uma prova de que crescer confere vantagens suficientes (como evitar ser comido por predadores) para compensar a perda de independência reprodutiva. O altruísmo celular se provou uma estratégia viável para prevalecer na seleção natural.
Carambolas
A hipótese esponjosa de Haeckel permaneceu incólume, por 140 anos, como nossa melhor explicação para a origem dos animais. Até que apareceram as carambolas-do-mar – nome popular dos ctenóforos, bichos aquáticos translúcidos e gelatinosos, que lembram águas-vivas com forma de bola de rugby. Em 2017, um estudo comparativo de genomas identificou as carambolas, e não as esponjas, na raiz da irradiação dos animais. E essa conclusão tem respaldo no registro fóssil: no sul da China, há um fóssil de carambola de 631 milhões de anos na formação geológica de Doushantuo – uma data que corresponde à época mais aceita para a origem dos seres multicelulares.
Nem uma coisa nem outra são suficientes para tirar o trono pioneiro das esponjas. Afinal, sempre dá para encontrar um fóssil mais antigo – neste exato momento, uma potencial esponja de 890 milhões de anos está gerando debate entre paleontólogos. O registro geológico não é uma foto perfeita da realidade, principalmente quando estamos tratando de animais moles, que geralmente se decompõem sem deixar rastro. Além disso, análises filogenéticas estão sujeitas a alguma incerteza: métodos e pesquisadores diferentes extraem conclusões distintas dos mesmos DNAs.
Seja como for, essas duas descobertas reacendem o debate. E afora as carambolas, há um outro front de pesquisa que desafia as ideias de Haeckel: a investigação de protistas ainda mais estranhos que os coanoflagelados, que alternam entre estágios de vida uni e multicelulares. Vide o caso dos mofos do lodo – que não são mofos, e não vivem necessariamente no lodo.
Da lama ao caos
O Dictyostelium discoideum, nome do mofo do lodo mais conhecido, começa a vida como uma ameba microscópica – um protista de célula única. Quando falta comida, essas amebas se agregam e começam a formar uma lesma visível a olho nu, chamada pseudoplasmódio, que tem algo entre 2 mm e 4 mm, é composta por mais de 100 mil indivíduos e age como um organismo só.
A colônia é tão coordenada que uma molécula chamada fator de indução de diferenciação entra em cena e faz exatamente o que o nome diz: induz as amebas de cada região da lesma a se diferenciar, assumindo papéis distintos na locomoção. A gosma rasteja atrás de um local quente e úmido, escolhe um bom ponto e então se transmuta em algo muito similar a um cogumelo: um pilar que sai do solo e sustenta uma estrutura arredondada na ponta. Esse é o corpo frutificante, que vai soltar esporos no ambiente, dando origem a amebas bebês que reiniciam o ciclo.
Um comportamento alienígena semelhante aparece em outro ser ameboide, chamado Capsaspora owczarzaki. Em um certo estágio da vida, ele pode tanto se agregar em colônias como se blindar em pequenos cistos individuais. O Capsaspora não faz nada tão legal quanto os mofos do lodo, mas sua relevância é outra: ele é um parente muito mais próximo dos animais. Pertence ao grupo Filozoa – que inclui nós e os protistas mais parecidos.
Um casal de biólogos marinhos australianos, Sandie e Bernard Degnan, da Universidade de Queensland, descobriram em 2019 que o padrão de expressão dos genes do Capsaspora e de alguns coanoflagelados que formam grupos é muito parecido com o das células das esponjas. Mas não com o dos coanócitos, que eram os candidatos de Haeckel. E sim com o dos arqueócitos, um outro tipo de célula que recheia o bicho. Elas são células-tronco, que podem se transmutar em qualquer outra parte do animal, incluindo os próprios coanócitos.
Isso leva a um quadro diferente dos primeiros anos de fauna terráquea, em que os animais não evoluíram a partir de bolas de células idênticas, e sim a partir de células que conseguiam se metamorfosear para exercer funções diferentes ao longo de seus ciclos de vida. Os primeiros animais seriam colônias mutantes, formadas por células-tronco que assumiam personas biológicas conforme a necessidade. Com a evolução de bichos mais complexos, esses coringas foram empacando em formas especializadas e perdendo a versatilidade – o processo que deu origem aos órgãos e tecidos que nos formam hoje.
Isso não diz nada sobre esponjas ou carambolas serem os primeiros animais, mas mostra o quão estranhas as primeiras esponjas e carambolas podem ter sido em comparação a seus descendentes atuais. Imagina-se que os oceanos do Ediacarano – o primeiro período geológico com fósseis de animais, que começa há 630 milhões de anos – eram um berçário pacato de vida multicelular, sem presas e predadores. Havia apenas seres boiando e filtrando nutrientes. No nível microscópico, porém, eles talvez fossem mais sofisticados do que damos crédito. Ninhos de células versáteis como David Bowie, que eram Ziggy Stardust em um dia e Alladin Sane no dia seguinte. Ch-ch-ch-ch-changes.
Gigantes de laboratório
Existe um ramo das pesquisas sobre multicelularidade em que os biólogos submetem células solitárias a pressões seletivas, em laboratório, para fazer com que elas se juntem. Entenda um desses estudos, realizado no Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos EUA.
1. O experimento começou com leveduras, os fungos de uma célula só que fermentam pão e cerveja. Eles foram postos em tubos de ensaio. Os mais pesados, que afundavam mais rápido, eram selecionados e passados para um novo tubo. Os biólogos repetiram o processo 60 vezes.
2. A ideia é que as leveduras pesadas tendem a ser blocos com mais de uma célula, como dois pães de queijo que saem grudados do forno. Esses “siameses” nascem quando uma levedura tenta se reproduzir se dividindo ao meio e não consegue completar o processo por causa de uma mutação no gene ACE2.
3. Sessenta filtragens depois, já havia grupos razoavelmente grandes de células coladas. Mas eles ainda eram microscópicos. Para aumentá-los, os cientistas mexeram no DNA do fungo para que ele não conseguisse mais respirar oxigênio e gerasse energia por fermentação, um processo menos eficiente.
4. Resultado: os grupos de leveduras fermentadoras cresceram tanto que ficaram visíveis a olho nu. Já os que respiram oxigênio precisam permanecer pequenos, porque o gás não chega até o meio da colônia se ela é grande demais. É por problemas assim que nós evoluímos um sistema circulatório, que distribui o gás usando o sangue.
Fonte: artigo “De novo evolution of macroscopic multicellularity”, por G. Ozan Bozdag e outros.
Consultamos: artigos “Pluripotency and the origin of animal multicellularity”, de Shunsuke Sogabe e outros, “Evolution of key cell signaling and adhesion protein families predates animal origins”, de Nicole King e outros, “Ernst Haeckel and the philosophy of sponges”, de Andrew S. Reynolds; livros The Tangled Tree, de David Quammen e The Social Amoebae, de John Tyler Bonner; texto “Scientists Debate the Origin of Cell Types in the First Animals” na Quanta Magazine e “Capsaspora owczarzaki, a quick guide”, por Maria Ferrer-Bonet e Iñaki Ruiz-Trillo, na Current Biology.
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